O
anjo-da-guarda:
- A avó diz que é o nosso Anjo
da Guarda, que a toda a hora nos acompanha, como uma sombra. - disse Angelina
molhando a mão na água fresca - E deve ser mesmo, porque ali senti-me bem guardada e orientada. Ela até costuma dizer que esse anjo é
normalmente a nossa bisavó, mas a minha não sei. Uma "morcega", acho
que nunca pode dar um anjo!
As
pessoas mais velhas:
- Isto até
dá para fazer acrobacias! - comentou Angelina tentando equilibrar-se na beira
da pia - Se a avó me visse, chamava-me logo de cabrita.
As pessoas mais velhas não podiam ver fazer
nada... Estavam sempre a ralhar, a reclamar e a dizer que
aquilo, mais aquilo e ainda outra coisa não se podia fazer. No entanto, ela
começava a acreditar que tal jeito era próprio das pessoas mais velhas. Cada
vez mais se convencia de que, se conseguisse viajar até ao tempo em que a avó
ou os pais eram da sua idade, iria encontrar a mesma cena: eles a quererem
divertir-se e os seus pais a ralharem. Era assim uma maneira dos mais velhos
mostrarem que eram eles que sabiam tudo e que eram eles que mandavam. Mas era
esquisito porque até parecia que os mais velhos não queriam que eles brincassem
ou se divertissem! A brincadeira e a animação deviam ser obrigatórias para
todos, novos e velhos. Podia ser uma maneira para conseguir que as pessoas mais
velhas andassem com caras menos carrancudas!
O
disfarce:
Quando um cuco fêmea cismava que era naquele ninho que
iria deixar um ovo, tratava de arranjar uma ocasião em que os seus donos se
ausentassem. Se por acaso o ninho era bem guardado, ele encarregava-se de
arranjar forma de afastar os guardas, de modo a ir lá pôr o ovo sem ser visto.
Segundo tinha explicado a "setora" de Ciências, nessas alturas em que
se tornava necessário afastar os donos dos ninhos para que não vissem a
operação, os cucos conseguiam alongar as asas e o rabo, disfarçando-se de
gavião.
- Ora,
avistando um gavião, os pobres pássaros nem para trás olhavam, assustados, pois
bem sabiam que aquele predador os queria comer. - disse Angelina imaginando a
cena.
Os
sermões:
Nessa altura, aqueles sermões
já nem um bocadinho sequer a preocupavam. Tinha sofrido a bom sofrer no tempo
em que só o seu vozeirão a punha a tremer. Já longe ia o tempo em que não
levara uma lambada dele por pouco, apenas por lhe ter dito que a mãe tinha mais
que fazer do que ir à escola. E, aí, se ele lhe tivesse batido, bem que as
tinha levado e calado... Se calhar até tinha arranjado uma forma de
desaparecer. Só que, passado aquele tempo, tudo era já muito diferente! Desta
vez, só não lhe dissera "escreva para aí à vontade que eu não me ralo nem
um bocadinho", porque tinha preferido gozar mais tarde, com a cara dele,
quando lhe fosse dizer, "Setor Afonso, tenho imensa pena mas
vou ter que deixar a escola. Vou ser atriz... o mundo da fama está à minha
espera!" Certamente que seria a sua primeira representação pública como atriz pois,
com o interior às gargalhadas, iria fingir que estava muito chorosa - sobretudo
por ir deixar o "abrutamontado" do seu diretor de turma.
Os tipos de frase:
Só nessa altura é que ela tinha suspeitado que o que a
"setora" de Português ensinava, se calhar até tinha alguma
importância. Ela fartara-se de falar nos tipos de frase,
onde aparecia o interrogativo, que era o jeito de fazer perguntas. Realmente,
tinha que reconhecer que não fora por falta de repetição da professora... Ela é
que nunca tinha dado qualquer atenção, até porque não tinha conseguido
adivinhar que tal coisa lhe poderia ser útil. Agora, naquela situação em que o
Rogério apenas lhe tinha dado a possibilidade de fazer três perguntas, ela não
conseguira sair-se minimamente bem. E curiosamente, até tinha feito, havia
pouco tempo, um TPC onde fora obrigada a construir frases dos diferentes tipos:
declarativo (dava uma informação), exclamativo (fazia uma exclamação),
imperativo (dava uma ordem) e interrogativo (fazia uma pergunta). Se tivesse
dado mais atenção... Se tivesse treinado a construção das frases, em vez de ter
copiado o TPC pelo Rodrigo, de certeza que tinha conseguido sair-se melhor.
Devia ter sido capaz de arranjar uma maneira de perguntar coisas ao Rogério,
sem usar o tipo interrogativo. Assim, nem tinha conseguido satisfazer a sua
curiosidade e tinha feito aquela figura de "calhau", como ele tinha
dito.
O ser
humano:
O ser humano tinha essa
caraterística: tanto era capaz de desconfiar como de acreditar, dependendo da
forma como se lhe mostravam as coisas... Tanto era capaz de acarinhar como
magoar, conforme o tipo dos seus sentimentos. E a grande dificuldade de
qualquer ser humano em conhecer o outro estava em conseguir ver, de fora, o que
estava lá bem dentro... A grande dificuldade era olhar a outra pessoa
desconhecida e conseguir ver as caraterísticas do tecido que forrava o seu
coração, que era a caixinha que guardava o sentir. Não dava para entender muito
bem a razão daquela localização que Deus sabiamente determinara, mas a verdade
era que essa caixinha era a coisa mais bem escondida de cada ser humano.
Angelina nunca tinha percebido aquela má vontade que
as pessoas tinham contra os cucos, como se eles fossem seres menos dignos, até
ao dia em que o Pedro, na aula de Matemática, tinha chamado o Lula de
"cuco". Tinha sido por ele ter apresentado um resultado certo de um
problema sem ter sido ele a resolvê-lo. Nessa altura, apesar do Lula não se ter
ofendido, pois também não deveria saber ao certo o que ele lhe tinha querido
dizer, o professor tinha dado um raspanete ao Pedro, pela indelicadeza ou mesmo
ofensa grave. Como sempre acontecia, as discussões não ficavam por ali e iam
sempre dar às aulas de ciências, que era a "setora" que mais
paciência tinha para os aturar.
-
O cuco é um animal parasita que vive explorando o
esforço dos outros animais.
-
Só nessa altura é que o Lula percebeu a provocação e
ficou "vermelho como um tomate", enquanto o Pedro enchia aquela
bocarra com o seu sorriso trocista. - disse Angelina, relembrando a cena - E a
sorte do Pedro era ter mais corpo que o Lula, senão ainda tinha levado por o
ter chamado de parasita!
O rótulo de qualidade:
Depois o Rogério voltara com outra garrafa, agora já
sem ser de coca-cola e já mais parecida com um frasco de xarope e com um largo
sorriso, pusera apenas no cálice de Angelina.
- A
outra era a bebida dos atores, esta é a vitamina dos deuses... Bebe! - dissera
ele estendendo-lhe o cálice.
Sem questionar, Angelina tinha levado o cálice à boca e só parara
porque aquela bebida já não era doce e sabia a remédio.
- Ó
minha filha, a vida é assim mesmo!... - dissera ele, vendo-lhe a cara de
espanto - Nem tudo pode ser doce. A vida de atriz também
tem dias amargos!
Os
filhos do casal:
- Isso, dito assim, até parece
muito fácil de entender... Mas os filhos do casal onde é que ficam? Em que
sítio dessa estrada eu estou? - perguntara ela animada por aquela imagem, que
era uma forma fácil dele fazer entender as coisas, enquanto sentia que já
começava a gostar um bocadinho do Rogério.
- Tu estás na melhor parte. -
garantira logo ele -Porque há um espaço relvado entre as duas estradas seguidas
pelos teus pais... é aí mesmo que é o teu espaço. E a vantagem de ficares aí é
muito grande, pois podes receber cuidados, carinhos e atenções dos dois lados.
Era fácil de entender. Quando um casal estava na tal encruzilhada, a
bulhar um com o outro por causa da escolha da estrada, qualquer um dos dois
apenas estava empenhado em conseguir ver uma maneira melhor de "azucrinar
o juízo" ao parceiro... Cada um só conseguia ver o que era preciso fazer
para arreliar o outro... e até dos filhos se esqueciam!
A
aldeia da avó:
A aldeia da avó estava a ficar
velha, cheia de casas desabitadas e a quererem cair. Eram mesmo quase todas
velhas! Cada vez mais, também, todas as casas habitadas tinham pessoas velhas
que iam caindo, morrendo. Depois, essas casas, sentindo-se abandonadas,
deixavam-se também morrer e acabavam desmoronadas no chão. Certamente que seria
o que esperava a casa da avó. Quando a sua querida avó morresse, que Deus a
guardasse durante muitos e bons anos e repleta de saúde, porque era o único ser
no mundo com quem poderia contar... A verdade era que, quando ela caísse de
vez, garantidamente que a mãe de Angelina nunca seria capaz de trocar o
apartamento da cidade pela casa velha da avó.
- Aquilo é uma pasmaceira... não acontece lá nada!... - costumava dizer a mãe às amigas quando falava da sua aldeia - nem temos com que nos chatear!
Frequentemente:
Frequentemente, Angelina via-se cercada por lembranças, ideias, pensamentos perturbadores que nem sempre era fácil afastar... que nem sempre era possível ignorar...que nem sempre era simples não dar atenção ou importância! Eram "flashes" aflitivos que a procuravam... Eram momentos vividos que num lampejo a visitavam... Eram dores fortes que já estavam no passado mas que não queriam morrer... Eram lembranças que vinham ter com Angelina, apesar da sua vontade de não as querer ter por perto. A sua mente, como num ecrã de cinema, era preenchida por imagens que se sobrepunham, soltas do tempo e do lugar, onde a emoção de Angelina parecia ser suficiente para as alimentar e lhes prolongar a vida!
Ali mesmo, Angelina procurava mandar para longe, a todo o custo, aquelas lembranças que lhe começavam a humedecer os olhos, só que para isso precisava da ajuda de outras, mas nem sempre as novas ideias ou outras lembranças se deixavam convocar ou apareciam para as empurrar da cabeça para fora! Como a mente não podia estar vazia, precisando de ter sempre o pensamento a funcionar, as más lembranças aproveitavam todas as oportunidades, por mais pequeninas que fossem! Parecia que elas estavam sempre à espreita de uma nesgazinha para se fazerem lembrar, para se meterem onde pudessem ser vistas.
Um
arrepio de frio:
Um arrepio de frio gelou-lhe os sentidos e ela olhou para trás, como se se sentisse perseguida pela
imagem daqueles corpos deitados nas covas do cemitério, ou de repente
descobrisse que estava acompanhada por um batalhão de almas. Depois, sentindo a
quelha já toda tomada pela noite, um medo súbito fê-la correr alguns metros em
direção à luz que se via ao fundo, como se fosse a saída de um túnel. Já na rua
mais arejada e ainda com a respiração apertada olhou o espaço escuro de onde
tinha saído e pareceu ver a abertura de uma sepultura na vertical. Era como se
os copos da taberna tivessem levado o ti António Coveiro a abrir a cova ao alto
em vez de a abrir ao correr da terra, ou seja, na horizontal. Nessa altura, um
novo arrepio de medo voltou a sacudi-la apenas por imaginar que ela própria
podia ter acabado de sair de dentro de uma sepultura.
Por
trás das lágrimas:
Por trás das lágrimas,
Angelina via o cemitério com muitas covas abertas e sem saber por onde seguir.
Todo o seu chão parecia agora furado, incerto. Mesmo nos sítios onde se via
terra firme, não havia garantia de que os copos do ti António coveiro não
tivessem lá posto, de forma disfarçada, uma cova para ela cair... E no meio dos
buracos, o Rogério. Era uma figura horrorosa de coveiro, de enxada na mão, a
escavar, a escavar, a escavar... em que o ruído que vinha do cortar do caldo verde
ajudava a tornar mais real a ação da enxada.
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