Flashes


Capítulo I

Com a encosta do monte a escorregar-lhe aos pés até ao fundo da sua visão, Angelina descia, sem pressa, o caminho que levava ao ribeiro. O sol, bem longe, deslizava devagar numa pista encarnada, em direção ao mar. Apesar de ser fim de tarde, o calor ainda se fazia sentir com bastante intensidade. No ar flutuava uma sede pegajosa que procurava as bocas, para lhes beber a humidade.

Capítulo II

 O brilho alaranjado do pôr-do-sol subia o monte até ao amontoado das silvas, como se quisesse disputar com Angelina a colheita das amoras. Entretanto, sentindo pouco a pouco, o verde das folhas do silvado tomar uma tonalidade doentia, Angelina suspendeu a busca para deitar um olhar rápido ao poente. De imediato, o "sentido estético e o gosto plástico", de que tanto falava, nas aulas, o "setor" de E.V., vieram-lhe à cabeça. Se os tivesse desenvolvido ou, então ainda mais garantido, se tivesse nascido com o jeito para desenhar como o Lula e o David, faria daquela imagem uma bonita tela para colocar na parede do seu quarto. Só que aquelas aulas, também, eram uma valente seca e não pareciam servir para grande coisa. O melhor de tudo ainda era o facto de poderem andar de pé. Ao menos, assim, não tinha que suportar a dor no rabo por estar sentada noventa minutos. Além disso, volta e meia, até podia ir à casa de banho para arejar.


Capítulo III

Com os pés dentro de água, Angelina aproveitava o resto do ribeiro que, agora, apenas fazia escorrer a sua frescura num reduzido rego, por entre pedras e areia lavada. Sempre que ali chegava, não conseguia resistir à tentação de molhar os pés. Nos anos menos secos, ou até ao início do verão, o ribeiro ainda transportava água suficiente para encher aquele espaço de uma música aflautada e fresca, a que a passarada, no alto dos ramalhudos carvalhos e castanheiros que ladeavam o espaço, juntava os seus trinados. As mulheres da aldeia, aproveitando a água "atancada" pela represa, alimentada pelos homens que tapavam o ribeiro mais abaixo para regarem as leiras, ali lavavam a roupa, juntando à sinfonia o bater e o esfregar na pedra, como o ritmo de tal música.


Capítulo IV

         Apenas a alguns passos do local onde as mulheres batiam a roupa, uma pia de pedra, a fazer lembrar um bidé de casa de banho para gigantes pousava-se sobre o verde da relva. Era por ali que, em cada lavagem, passavam as peças mais sujas. Mais ou menos vezes, praticamente todas as mulheres da aldeia tinham que carregar água para encher a pia e, no final, tirar o trapo que fazia de rolha. Com este gesto, a água suja dirigia-se, através de um rego, para longe do ribeiro. As mães com crianças, por causa das fraldas, e as outras mulheres por causa das calças encardidas e encharcadas de sujidade dos trabalhos menos limpos, era naquela pia que tiravam a maior imundície. Depois, a lavagem terminava na água do ribeiro que ali ficava represada.


Capítulo V

Com um pé pousado sobre o monte de cepas que se aglomerava no meio do portal da horta da avó, a fazer de cancela, Angelina ergueu a cabeça para um castanheiro. Como um guarda da hortaliça, a árvore levantava-se, ramalhuda e colorida, de um canto, bem acima da verde parra que cercava o pequeno terreno. De um dos seus ramos compridos, já próximo do cocuruto, um canto repetitivo e rouco começou a soltar-se.


Capítulo VI

As couves erguiam-se acima da altura da sua cabeça e cercavam-na como árvores numa floresta. Angelina olhou a horta, um lago verde e depois baixou o olhar para os caules das couves, cravejados de marcas rugosas. Sem perceber bem o que fazer, vagueou o olhar em busca do sítio por onde começar a colher o caldo verde. Só que, com couves tão altas, por mais que olhasse apenas via folhas verdes, umas como orelhas murchas e outras como orelhas alarmadas... E, por baixo delas, a suportá-las, pés mais altos, mais baixos, mais finos, mais grossos, mais direitos, mais tortos, mais rugosos, mais lisos, com mais ou menos rebentos... mas todos a fazerem lembrar os paus das bandeiras. Plantada no meio daquilo tudo, parecia-lhe ser impossível alguém ali se poder orientar.


Capítulo VII

De couves na braçada a fazer lembrar um ramo de flores, pelo modo direito como as agarrava e o cuidado com que as apertava ao peito, Angelina deixou o ribeiro onde, por não ter conseguido resistir, voltara a ir molhar os pés. O sol já deixara de ser uma boca-de-fogo escancarada e agora assemelhava-se a uma pétala gigante, espreguiçada sobre o rosado do céu, em que o restante da rosa avermelhada já tinha escorregado para trás do horizonte. Todos estes sinais tinham lembrado a Angelina que eram mais do que horas de regressar a casa para não desgostar a avó. Apesar de saber que na aldeia não era como na cidade... Apesar de saber que ali não corria qualquer tipo de perigo, porque não apareceria nenhum automóvel a persegui-la, não apareceria nenhum "tarado" a meter-se com ela e a "mandar bocas", não apareceria nenhum desvairado de navalha em punho a dizer "passa para cá o que tens se não queres ver como esta morde!... Apesar de tudo o que se pudesse arranjar em favor da vida na aldeia e consequentemente em desfavor da vida na cidade, a avó não gostava de a ter longe dela. Além disso, Angelina, provavelmente porque assim fora criada, também não gostava de estar longe da avó.


CapítuloVIII
De entre as pedras caídas e pedaços de pau torturados pelo tempo, um emaranhado de silvas elevava-se a fazer lembrar as trepadeiras. Com braços compridos, volteados, esticados, pejados de picos... aquele emaranhado agarrava­-se às paredes da casa vizinha, que ainda se conseguia conservar de pé, apesar do seu aspeto de ruína. Por entre a floresta de silvas, junto aos paus apodrecidos, umas trempes quase desfeitas pela ferrugem e alguns cacos de loiça preta compunham ainda mais aquele aspeto de completo abandono. Nem sequer dava para adivinhar se tinha sido a derrocada da casa que tinha partido a loiça, ou se tinha sido alguém que decidira servir-se do espaço desaproveitado para fazer um despejo para o lixo. Por vezes, na aldeia, porque não estavam tão habituadas aos caixotes do lixo, porque o carro do lixo não passava lá todos os dias, porque havia sítios para onde ninguém olhava... as pessoas desfaziam-se dos objetos que já não queriam em casa, deitando-os para esses sítios onde não estorvavam às atividades do dia-a-dia.
  

Capítulo IX

A irregularidade do caminho que subia em direção à aldeia da avó obrigava Angelina a prestar atenção ao que pisava para evitar as pedras ásperas que se erguiam acima do chão. As águas das chuvas tinham arrastado a terra e as areias, que anteriormente escondiam aqueles perigos, deixando-os assim erguidos, a fazerem lembrar ossos descarnados, como se de verdadeiras fraturas expostas se tratassem. Pelo aspeto agreste e persistente que mantinham, dir-se-ia que pareciam determinados em aguardar, pacientemente, por um qualquer pé mais distraído, a fim de ser prontamente premiado com a sua rudeza. E, realmente, algumas das rochas eram tão pontiagudas ou laminadas que o menor toque descuidado seria o suficiente para rasgar a pele.


Capítulo X

Terminada a ladeira que se alongava em jeito de garganta até ao limite, surgia um caminho mais plano, que se atravessava de forma segura como para fazer sentir a sua importância, e estendia-se numa longa curva que abraçava a aldeia. Vindo do lado dos lameiros mais fundos, seguia em direção ao Largo do Relógio, que era um espaço aberto com um chafariz, onde um relógio de sol mostrava, no cimo de uma parede que fazia um dos seus lados, as horas através da sombra empurrada pelo astro-rei. A fazer lembrar uma linha de comboio, porque pareciam manter a distância entre elas, as relheiras, dois sulcos afundados pela passagem repetida das rodas dos carros de bois e dos tratores, esticavam-se junto aos muros baixos e de pedras soltas.


Capítulo XI
Ao entrar na quelha apertada que ia dar à casa da avó, Angelina sentiu mais densas as sombras da noite, já que as paredes de granito que ladeavam o estreito atalho tinham espantado algumas das últimas malhas de luz. Por entre as pedras das casas habitadas já se libertava o odor a fumo, que anunciava o acender das lareiras para o preparar da ceia. Angelina sentiu aquele aroma intenso a inchar-lhe as narinas, olhou as couves que levava na mão e suspeitou que tinha exagerado no tempo gasto. Àquela hora, já a avó devia estar à espera, com a panela "a ferver mentiras", que era o nome que ela dava ao ferver da água de uma panela sem lá ter nada a cozer. Angelina não conseguia imaginar o que teria levado as pessoas a dizerem "ferver mentiras" naquela situação, nem explicar a razão porque em vez de mentiras não usavam outra palavra qualquer. Mas o que ela sabia muito bem era que tal expressão significava desorientação, falta de cuidado com as coisas, já que assim se gastava lenha ou gás para nada!





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