Flashes

Capítulo I


Chegar a casa e sentir, ao rodar a chave da porta, a sensação estranha de liberdade, de estar solta e salva, com tempo e disponibilidade para o que lhe apetecesse era um sentimento que Angelina conhecia bem. Dois dias por semana chegava da escola e ficava sozinha em casa, pois os pais estavam a trabalhar. Apenas tinha presente as recomendações da mãe: "Não abras a porta a estranhos, não dês conversa ao telefone, não brinques com coisas perigosas, como os fósforos ou o fogão..." Mas, na verdade, a tarde era muito longa e, quando se está sozinho, o tempo passa mais devagar. 


Capítulo II

Depois do almoço era a altura dos telefonemas. Apesar de terem passado a manhã juntos, poucas ou nenhumas tinham sido as oportunidades de conversarem à vontade. Além disso, durante as aulas de uma manhã inteira muita coisa acontecia e muita coisa vinha à cabeça. Depois, também, não era necessário ter-se muita coisa para dizer!
Curiosamente, Angelina tinha colegas de turma, a quem ligava, mas com quem não falava pessoalmente durante vários dias. Assim, parecia ser mais fácil fazê-lo pelo telefone. No entanto, as conversas resumiam-se a um "já chegaste?", como se, estando a ligar-lhe para casa, fosse necessário fazer tal pergunta para saber que já tinha chegado. "Estás bem... O que é que vais fazer esta tarde?" Depois os momentos de silêncio começavam a aumentar e o embaraço, de nada mais ter para dizer, trazia uma inquietação crescente. Buscavam-se, desesperadamente, novas perguntas ou temas de conversa, só que, esgotado o diálogo rotineiro, era certo e sabido que o desligar estava para breve. 


Capítulo III


Como um turbilhão dorido, bem no centro das suas preocupações, a escola estava sempre presente. Era como se se tratasse de uma realidade adversa, um mundo estranho que Angelina não conseguia compreender, e muito menos conseguia aceitar. Era um espaço que, apesar de não ser muito grande, a fazia sentir demasiado pequena e perdida; pior do que isso, a atmosfera que envolvia a escola tinha, seguramente, alguma coisa estranha que a intoxicava, que não permitia que ela conseguisse respirar satisfatoriamente, quando estava dentro dela.

Apesar de já ter passado um período inteiro, nem por isso as coisas se tinham alterado muito. Era verdade que já não se esquecia de ir para as aulas. Era verdade, também, que já não se perdia ao mudar de sala. Também verdade era ela já conseguir perceber como funcionavam as senhas de almoço. Vendo bem, afinal, até já nem se assustava tanto quando via os grandalhões na sua direção... No entanto, o modo frio como todos continuavam a relacionar-se, a maneira desumana como quase todos continuavam a olhá-la, a forma insuportável como os adultos a continuavam a perseguir com os seus comentários, por todo o lado,... Tudo isto continuava a fazer com que Angelina se sentisse angustiada, igualzinha ao início do ano. 


Capítulo IV

Nesse dia entrara em casa com a certeza de que aquele homem era um mensageiro de Deus. Comera à pressa o arroz, que a mãe lhe deixara no forno do fogão, e fora para o espelho. Fizera uma oração a Jesus, agradecendo o envio do homem amigo e, sem perder mais tempo, pegara no rebuçado.
Logo às primeiras chupadelas tinha sentido um sabor estranho a encher-lhe a boca, enquanto um enorme arrepio lhe percorria toda a espinha. Olhara o espelho e parecera-lhe que a sua cara estava a desaparecer. Então, firmara-se melhor para ver se, em vez dela, lá aparecia algum ser divino. Contudo, apesar do esforço, nada de concreto tinha conseguido avistar. Apenas começara a sentir, na boca, como que uma enorme fonte que lhe jorrava saliva. Correra em direção à sanita, para cuspir, mas em vez do cuspo viera-lhe um vómito súbito que lhe fez sair todo o almoço.


Capítulo V

Tinha passado todo o fim de semana a pensar na Russa e no homem que lhe aparecera, tentando imaginar o que lhe teria acontecido se, por acaso, tivesse sido ela a acompanhá-lo, como de resto ele lhe pedira. 



Capítulo VI


Esgotadas as formas de ocupação do tempo, a televisão era sempre um meio que Angelina tinha ao seu dispor, para nunca ficar sozinha, nem se sentir no vazio. No entanto, apesar de estar toda a tarde ligada, ela não passava disso: era curta a atenção exclusiva que lhe dedicava. Não passava muito tempo que o telefone não tocasse; não era preciso esperar muito, para que uma ideia mais forte a fizesse correr para o espelho; não era necessário aguardar pelo final da tarde, para que uma vontade enorme de experimentar roupa e sapatos da mãe, a fizesse ir para o quarto dos pais...

No diálogo com o espelho, por vezes, surgiam-lhe ideias incomodativas que a deixavam desassossegada. Nessas alturas, Angelina ansiava que o telefone tocasse, procurava à pressa uma outra atividade desanuviadora, esperançada em, assim, conseguir "mudar de canal" e esquecer o que a perturbava. Quando o telefone não tocava nem outra atividade libertadora lhe ocorria, Angelina dirigia-se à televisão, companheira fiel de todas as tardes sem aulas, e procurava concentrar-se em qualquer pormenor ou curiosidade, sem grande preocupação com a história que rodava dentro dela. A sucessão dos factos, que alimentavam o enredo, apesar de ainda não a conhecer, já a sabia: chegava-lhe como que de forma intuitiva. 



Capítulo VII

A um passo da televisão, lado a lado e em silêncio, Angelina e a amiga olhavam o ecrã, como se não conseguissem resistir ao fascínio da "caixinha mágica"; como se estivessem dependentes do desenrolar da cena da novela, ou como se tivessem ficado hipnotizadas pelos encantos das paisagens paradisíacas, tipicamente sul-americanas. Vigiado por viçosas palmeiras, um casal de namorados oferecia-se, romanticamente, às ondas mansas de um fim de tarde. Um mar azul, vestido por uma profunda frescura, embalava-o ternamente como se, com ele, pegasse no Amor ao colo. E as duas amigas, como se adivinhassem o ataque súbito de um tubarão, pareciam não poder perder um único momento.    



Capítulo VIII


Quando a Rita voltou da casa de banho, depois de um compasso de espera, já a amiga estava ao telefone. Nem sempre é fácil encontrar a forma correta e eficaz de dizer o que nos vai na alma, muito menos ainda quando se é uma criança - por mais jeito e vocação que ela tenha para professora! Tinha sido essa a razão que a levara a sentir aquela vontade súbita de interromper a conversa com Angelina. Quando as coisas ficam mais intensas, devemos parar um pouco para pensar.
Tocara-lhe bem fundo a ingratidão da amiga para com os professores, ainda que só ela pudesse avaliar o tamanho da injustiça de tal sentimento. Tinha sido só a ela que a professora de História e Geografia confidenciara o plano: Uma vez que a turma tinha alguns alunos com mais dificuldades, a Angelina a Mariana, o Lula e o Rolo, que a continuarem assim iriam chumbar, os professores tinham decidido levar a cabo algumas atividades para fazer com que eles passassem a gostar da escola.” Ainda assim, apesar de tal desconhecimento e impossibilidade de adivinhação, ela entendia que aquele sentimento não ficava nada bem à amiga.


Capítulo IX


Já no quarto de Angelina, ainda trémulas como vítimas de um naufrágio, as duas amigas procuravam arranjar concentração suficiente para poderem experimentar aquele jogo de “faz de conta”, em que a Rita era a professora e tinha Angelina como aluna. A esta, a “professora” tinha que provar que andar na escola era muito importante, como diziam todas as pessoas grandes, mas que ainda assim não parecia razão suficiente para Angelina se deixar convencer!

No meio do quarto, sentada numa cadeira que fora buscar à cozinha e de caderno sobre a mesa-de-cabeceira, já sem candeeiro nem pano bordado, Angelina procurava deixar de tremer com a mão da caneta. De olhar atento no espelho, principiava a aula tentando copiar, no início da sua folha, aquela primeira lição e o título do acróstico, que a “professora” tinha escrito no "quadro". Agradara-lhe bastante aquela ideia de substituir o escuro e nada atraente quadro da escola, por um elegante e sempre atento espelho, que naquele caso até tinha a interessante particularidade, e feliz coincidência, de ser o seu amigo secreto e o seu confidente. 


Capítulo X


Com a cama do quarto encostada à parede, que parecia ainda mais encolher-se para não atrapalhar aquele momento de aprendizagem; com a "professora" inchada de satisfação, pelos resultados já conseguidos; com a “aluna” sentindo que, se calhar, também ela seria capaz de compreender o que os professores lhe exigiam que soubesse... o ambiente de sala de aula era verdadeiramente perfeito. Aliás, foi sentindo a magia do momento, que era preciso manter por ser algo muito difícil de conseguir, que a Rita compreendeu o grande desafio que agora teria que vencer: não permitir que nada nem ninguém pudesse intrometer-se e, com isso, interromper ou atrapalhar. Cabia-lhe, enquanto “professora”, a obrigação de tudo fazer para identificar os elementos perturbadores, e até os comentários impróprios, que pudessem trazer desconcentração e desaproveitamento àquele favorável ambiente.
A Rita sabia bem que a maior ameaça vinha da cabeça da amiga, cuja agitação fazia lembrar uma panela de água a ferver: para além de não consentir que o seu próprio testo estivesse sossegado, volta e meia volta, ainda incomodava o que estava ao seu redor, com o vapor ou os salpicos de água. Com esta finalidade bem presente, a Rita foi reprimindo as tentativas de Angelina em meter conversa. É que, à medida que ela ia avançando na leitura silenciosa do acróstico, parecia crescerem-lhe súbitas vontades de relacionar as partes do texto com o que tinha acontecido na aula de Formação Cívica.


Capítulo XI

A Rita engoliu em seco, emocionada, surpreendida... Não contava com uma resposta tão forte. Ainda por cima, sentia que precisava de dizer alguma coisa. Só que a forma de agir, o que dizer naquela situação, ela não sabia nem tinha preparado nada com a professora de HGP. Tratava-se de um imprevisto que não tinha sido previsto durante a preparação da aula, precisamente, porque os imprevistos não se conseguem prever. Mas os professores tinham que saber enfrentar qualquer imprevisto, porque também era para isso que eles estudavam e também era por aí que se media a sua competência.
O problema era que, na verdade, ela só era uma professora ”a fazer de conta” e aquele imprevisto era mesmo a sério. Ela precisava de ser uma professora a sério para explicar à amiga, de forma certeira, que a família e a escola são coisas muito importantes para qualquer criança ou jovem. Era preciso que ela fosse capaz de fazer entender a Angelina, muito bem, que a Escola e a família têm funções diferentes e, por isso, nenhuma tira o lugar à outra. Antes pelo contrário, qualquer uma delas pode e deve apoiar a outra. 

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