O Espelho
O espelho era, de facto,
o seu verdadeiro e perfeito amigo. Era o único que a ouvia com toda a atenção e
paciência. Era o único que nunca refilava nem se zangava com ela. E, ainda
melhor, era o único que nunca gozava com a sua figura! A vida era muito complicada
e havia alturas em que era muito importante ter um verdadeiro amigo para poder
desabafar. Havia momentos da vida em que as coisas tinham que ser deitadas cá
para fora porque, se o não fizesse, o peito era bem capaz de não aguentar!
Coitada da Angelina se não tivesse alguém em quem confiar completamente...! Ela
tinha alguém de confiança, o espelho, que garantidamente estava sempre
disponível para ouvir os seus desabafos.
Mesmo não falando, ela
aprendera a dialogar e, sobretudo, a ouvir os conselhos do espelho. Enquanto
desabafava, sentia no ar uma energia que a reconfortava, um toque afetuoso que
lhe afagava amavelmente o ânimo. Depois, quando tinha necessidade de decidir
alguma coisa, ficava em silêncio a olhar muito firme para o vidro, como um ermitão
fitando o céu em busca de inspiração divina. No silêncio, as opiniões do amigo
chegavam-lhe através de ideias, que lhe iam surgindo na cabeça: "Já
percebi", dizia Angelina, então, com satisfação "é mesmo isso que vou
fazer!"
A Avó
- A mãe - explicou
sorridente - mandou recado pelos meus colegas, que não ia à escola porque
estava doente e, assim, fiquei em casa da minha avó durante os dias seguintes.
Ela gosta mais de mim do que a minha mãe, pois foi ela que me criou, desde
muito pequenina. Todos os dias rezava o terço, ao meu lado, pedindo a Jesus e à
Nossa Senhora por mim. Também me contava aquelas histórias estrambólicas, do
seu tempo... Nessa época, as mulheres não usavam cuecas e faziam xixi de pé! A
avó só não gosta de vir para minha casa, pois diz que a cidade é para gente
fidalga!
A
bisavó
Já mal se conseguia
lembrar da bisavó, pois ela tinha morrido ainda Angelina era muito pequena, mas
toda a gente lá da aldeia, quando a via passar, dizia que ela era igualzinha à
ti Maria Angelina. Sempre vestida de negro e de feixe à cabeça, era dada a
poucas falas e raras amizades. Perdida e achada era nas suas hortas e leiras,
de onde vinha apenas já noite, o que lhe fizera ganhar a alcunha de "A
Morcega". Tal como estes mamíferos com jeitos de pássaros, também ela só à
noite é que era vista, esquivando-se pelas ruelas da aldeia, em direção ao
casebre, que era a sua habitação.
Da bisavó, o que Angelina
conhecia melhor, era a história da sua visita à cidade, a casa da neta. Parecia
uma autêntica anedota, que ainda agora a mãe costumava contar, quando queria
pôr toda a gente a rir.
A
Mariana
- Mas, o que é que hoje
te deu para só defenderes a Mariana? O que é que a Mariana tem que eu não
tenho? Se eu não gosto da escola, ela também não. Se eu tive quatro negativas,
ela teve três mas, atenção, ela já é repetente!
A Rita voltou a mostrar o
seu ar de entendida na matéria e, com a determinação de professora e com a
facilidade de amiga íntima, explicou que a Mariana se distinguia do resto das
meninas da turma, porque já era uma mulher... tinha-lhe vindo o período há dias
e isso tornava-a numa mulher capaz de ter filhos. Tinha sido essa razão que
fizera com que ela andasse com aquelas dores de barriga horríveis. Parecia que,
uns dias antes de ele vir, doía sempre a barriga e ficava-se maldisposta.
- Ela contou-te? -
perguntou Angelina muito interessada - Como é que deu conta? Já passou? Como é
que ela fez? A mãe ensinou-a? Onde é que ela arranjou os pensos higiénicos?
A Rita, vendo a amiga tão
interessada, fingiu não perceber o seu interesse e não mostrou grande desejo em
responder. Mas, Angelina parecia um poço de perguntas e continuou:
- Ela não teve nojo? Foi
por isso que ela faltou na terça? Já sabe usar bem os pensos? Foi difícil? Só
te contou a ti? Os professores sabem?...
- Aleluia! Até que enfim
te interessas por alguma coisa séria! - não conseguiu deixar de exclamar, por
fim, a Rita - E, agora, usa a tua cabecinha de andorinha e diz-me: a tua mãe já
te falou disto? Claro que não. A minha também não, a da Mariana também não e,
quase de certeza, as mães das outras miúdas da turma também não! Achas que a
tua mãe alguma vez te vai falar disto? Claro que não. A minha também não, a da
Mariana também não e as outras mães também não. E nós podemos viver sem saber
estas coisas, sem conhecer bem o nosso corpo? Claro que não!
A Rita
Enquanto a Rita falava,
Angelina tinha os olhos pousados no acróstico. Uma nova onda de vergonha
assaltava-lhe o rosto, pois descobrira que muito do que estava no texto e tudo
aquilo que agora a amiga dizia lhe assentava em cheio. E como se já não
bastasse, também percebia que a Rita lho dizia só para ela despertar. Tal como
a personagem do acróstico também ela, até ali, sentira que praticamente todos
tinham culpa pelo que ela não tinha nem aprendia: os professores, os
funcionários, os do Conselho Executivo, as mulheres da cozinha, os colegas
maiores... Todos, todos, menos ela!
- Realmente - continuou a
“professora”, sentindo que tinha chegado o grande momento que tanto esperara, e
que até tinha receado nunca conseguir atingir - como diz o acróstico, só a
escola é capaz de alegrar e pintar de cores mais claras o nosso futuro...
Realmente, só a escola é capaz de nos fazer pensar e agir de forma inteligente!
Se não fosse o que aprendi na escola teria concordado contigo e, a esta hora,
estarias a preparar-te para a “fornicadela” do Pedro. A escola abre-nos os
olhos e faz-nos ver o que verdadeiramente nos interessa!
Enquanto a amiga mantinha
a cabeça baixa, fingindo fitar atentamente o acróstico, a Rita rematou:
- Angelina, sempre
achaste que eu era mais inteligente do que tu. Queres saber porquê?
Angelina levantou a
cabeça e encarou a amiga, curiosa. A outra continuou:
- Apenas porque eu vou
para a escola, todos os dias, com vontade de aprender mais. Apenas porque eu
vejo, em cada professor, um amigo que me quer ajudar a fazer crescer. Apenas
porque eu, quando me surgem os problemas, não enterro a cabeça na areia!
A
Russa
Durante muito tempo, a
Russa não voltara às aulas, e quando regressou, nunca mais tivera liberdade
para andar sozinha. Para sair da escola era acompanhada pela mãe ou pelo pai, e
outras vezes pelo irmão mais velho. Como se, a partir daquele momento, ela
passasse a estar mais ameaçada. Como se, a partir daquele dia, ela tivesse mais
alguma coisa verdadeiramente importante que pudesse ser cobiçada. Como se, a
partir dali, a Russa tivesse mais alguma preciosidade que pudesse perder.
“Já não lhe bastava ter
perdido assim a virgindade de forma tão estúpida, ainda perdia também a
liberdade!”
Os
pais
- E que
problemas é que isso me resolve? - retorquiu Angelina, aparentando ter deixado
esgotar a paciência - Neste momento, a única certeza que eu tenho é que acabo
de perder os meus pais... Acabo de perder a minha família... Sou mais uma órfã
ao cimo da terra!
A Rita
cruzou e descruzou os braços, impaciente, enquanto olhava impotente a tristeza
profunda da amiga.
- Que
exagero, Angelina - acrescentou, por fim - isso só teria acontecido se os teus
pais tivessem morrido.
- Bate
aí - pediu Angelina, enquanto acompanhava a corrida da amiga para a mesa de
madeira, onde bateram com as mãos fechadas.
Depois a
Rita continuou.
- Que eu
saiba, nenhum deles morreu, portanto, eles continuam a ser os teus pais. Eles
não precisam de estar juntos, de viver na mesma casa para desempenharem as
obrigações de pais!
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