Episódios

A confissão:

Angelina ficava sempre nervosa, quando se ia confessar. Era uma sensação estranha. Sabia que ia estar perto de Deus e, por essa razão, não podia esconder nada ao padre. Era como se ele pudesse adivinhar alguma coisa que ela não lhe contasse e, de repente, a começasse a maltratar por o ter tentado enganar. Por isso, sempre que se aproximava o dia, e até ao momento de dizer o Ato de Contrição, ela registava mentalmente o que ia dizer. Assim era tudo mais fácil. Tal como sabia que tinha que dizer logo no início, "perdoai-me, padre, que eu pequei", também os pecados saíam de seguida, sem ter que andar à procura deles. Desta forma, o risco de se esquecer de algum era muito mais pequeno.


O castigo:

A avó tinha a certeza de que fora a vaidade que levara a mãe à perdição. Ela não sabia a quem a mãe de Angelina saía, porque nem a avó nem o avô tinham padecido de tal mal. Ela sempre fora "uma armadinha", muito aérea e "senhora do seu nariz"... Sempre dera muita importância à sua imagem... Sempre fora muito de "olhar para a sua sombra". O pai de Angelina era um bom homem e um bom marido. Segundo a mulher, que se costumava queixar, não gostava muito de trabalho, mas também não era homem de passar o tempo nos cafés, nem de se embebedar. Ora, só isto já era uma coisa tão boa que podia, perfeitamente, desculpar várias outras imperfeições.
-  O vinho dá cabo dos homens! - gostava de dizer a avó - As mulheres quando têm a "sorte" de casar com um bêbado, têm o Céu ganho!


 As amoras:

Ora levantando-se em pontas dos pés, ora esticando--se toda para a direita e depois para a esquerda... ora evitando pontas das silvas, ora pegando-lhes com cuidado para as desviar do caminho de uma amora... ora fixando-se no emaranhado de hastes cobertas de picos, ora preocupando­-se em armazenar a colheita na mão em concha... como num bailado, Angelina parecia extasiada pelo fascínio daquele momento que, espontaneamente, a Natureza se tinha encarregado de lhe preparar. E enquanto desfrutava do encanto daquela mesa posta, na sua mente afirmava-se uma doce certeza, ainda mais suculenta do que a promessa das amoras: "Não há vida como a da aldeia. Na cidade não é possível encontrar um manjar assim!"


Os cabeçudos:

-   Que bonitos! - disse Angelina procurando com o humor afastar certas lembranças e com o dedo apontado para uma pequena poça de água, onde, com um olhar atento se conseguiam ver pequeninas e buliçosas cabeças -Têm muita sorte, pois se andassem na escola, em vez de cabeçudos tinham um nome bem mais feio..., como burros, por exemplo!
Angelina sabia que era naquela altura, em que o leito do ribeiro não estava afogado pela corrente que as suas maravilhas se tornavam visíveis. Por causa do percurso caprichoso do rego do resto da água, ao longo do leito iam--se formando pequenos lagos e minúsculas lagoas. E era nelas que Angelina sabia que podia encontrar os cabeçudos e as sanguessugas.


As sanguessugas:

-   Antigamente, eram as sanguessugas que sugavam o sangue envenenado dos doentes. Era assim uma espécie de sangrias, de que falava a "setora" de HGP, mas sem navalhas.
Ela nem gostava nada daquela disciplina, apesar de a Rita lhe ter provado que a "setora" até gostava dela, mas tinha que reconhecer que, quando ela se punha a contar aquelas histórias já muito antigas, as aulas eram mesmo um espetáculo. Tinha sido assim com as sangrias...


A violência doméstica:

-    Devias ter chamado a polícia. - garantira a Rita, no dia seguinte, quando ela quisera saber se estava assim tão triste por causa da aula que lhe tinha ido levar a casa - A violência doméstica é algo que ninguém pode esconder.
Na sua maneira de sentir as coisas, ela tinha ficado tão nervosa e desesperada que nem se tinha apercebido que aquilo era violência doméstica. A primeira ideia que lhe viera à cabeça, logo que a mãe a enxotara para se ir atirar ao pai como uma fera, tinha sido correr para o quarto. Ali havia ficado, longo tempo, a ouvir gritos, declarações de raiva e desespero, tremendas juras e ameaças, horríveis nomes e palavrões... Tudo do mais feio que já tinha ouvido! E o difícil tinha sido acreditar que tudo aquilo não era uma zanga do maralhal graúdo lá da escola que, como um vulcão, de repente rebentava e punha tudo à volta em sentido... Muito difícil de aceitar fora perceber que aquelas palavras traduziam sentimentos que propositadamente se jogavam no ar, como foguetes, para que, depois, estoirassem mesmo por dentro dos nervos... E mesmo o mais difícil tinha sido o conseguir aceitar que tais palavras saíam da boca de dois adultos que, no meio de tantos possíveis, tinham, precisamente, que ser os seus pais!


As cabras:

- Mas as cabras são engraçadas. Por melhor que seja o caminho, elas andam sempre à procura de pedras ou altos para se empoleirarem. - disse Angelina lembrando-se do tempo em que a avó ia à frente e ela atrás, com uma vara pequena para as enxotar.
A avó contava-lhe muitas histórias com cabras, mas nenhuma a encantava tanto como aquela em que Viriato tinha atado os archotes aos chifres das cabras e as tinha lançado encosta abaixo para enganar os romanos. Parece que, numa altura em que andavam em luta contra os Romanos, os lusitanos tinham ficado cercados no alto de um monte. Como estava muito nevoeiro, Viriato tivera a grande ideia de iludir o inimigo. Dado que havia lá muitas cabras, e cada cabra podia levar dois archotes, a ideia fora fazer crer ao inimigo, que os via de longe, que cada archote era um soldado, logo cada cabra representava dois soldados. E, de facto, tudo tinha acontecido como Viriato imaginara: os romanos, vendo um número tão grande de archotes a descer a montanha convenceram-se de que vinha ao seu encontro um enorme exército e então abalaram dali a toda a pressa. Daquela forma e mesmo sem terem que lutar, os lusitanos tinham saído vencedores.


A origem de Viriato:

A "setora" tinha explicado que não se conseguia ter a certeza de que Viriato fosse mesmo o seu verdadeiro nome. Era assim uma coisa difícil de explicar pois, como ninguém tinha conseguido achar o seu bilhete de identidade ou qualquer outro documento que dissesse qual era o seu verdadeiro nome, as pessoas que estudavam o seu tempo punham-se a levantar hipóteses. É que Viriato também poderia querer dizer "o portador das vírias", que eram uns braceletes enormes de ouro que os chefes guerreiros e os reis usavam nas pernas e nos braços.
-  Virias, viriato! - disse Angelina pensativa - Pode ser, realmente.
Era um pouco como acontecia com o ti João Lameira, que era um homem que morava mesmo à saída da aldeia e que, porque era ele que compunha os tachos, as panelas, os guarda-chuvas, as máquinas de sulfatar e tudo o que tivesse a ver com latas, em vez de o chamarem pelo seu verdadeiro nome, toda a gente o conhecia por "latoeiro"!


O pacto de sangue:

-  A nossa aliança é algo profundamente sagrado e, por isso, tem que ser celebrada com um pacto de sangue. -explicara o Rogério, quando Angelina quisera saber para que queria ele a agulha que lhe mandara ir buscar às coisas da mãe.
Depois, pegara na agulha com uma mão e com a outra pegara na mão dela. Tinha posto o ar mais sério, mais solene e assim desenhara uma cruz na mão dela e logo a seguir outra na mão dele.
-   A união faz a força e a força vem do sangue. Assim, o sangue teu, que é fraco, vai unir-se ao meu sangue que é forte. E ambos ficarão unidos pela força, como um só sangue. Com este pacto, o teu sangue deixa de ser o teu sangue e passa a ser um sangue que me pertence porque se uniu ao meu sangue! Logo a seguir, com todo o cuidado para não magoar, o Rogério começara a espetar-lhe a agulha na pele, assim como para tirar um espinho, até que um pequenino poço de sangue surgira. Sem perder tempo, fizera o mesmo na mão dele. Nessa altura, ainda com o mesmo ar grave, tinha carregado o bico da agulha com o sangue dele e transportara-o para o pocinho da mão dela.
-   Sangue forte que eras só meu, faz forte este sangue que era fraco. E estes dois sangues que corriam separados passam, a partir de agora, a correr juntos. E da minha boca não deixarei sair palavra que possa trair esta união ou prejudicar este sangue.
Como prova do que tinha acabado de dizer, o Rogério levara a mão de Angelina à sua boca e sugara-lhe o pocinho de sangue.


O cuco:

A avó ensinara-lhe que o cuco era assim como um daqueles magos ou adivinhos que nos podiam dar pistas para o futuro. E por essa razão, a presença de um cuco devia ser muito bem aproveitada.
-    Se estivermos num sítio que dê para a gente se espojar, devemos atirar-nos para o chão e rolar na terra. -murmurou, relembrando os ensinamentos da avó - Desta forma conseguimos aumentar o nosso crescimento!


Os ninhos da poupa:

-   Os ninhos da poupa são feitos de cocó e porcaria de animais. - dissera Angelina, com um sorriso, convencida que ia deixar toda a turma de boca aberta.
-   Ó Pedro,... Cala-te! - ordenara a professora quando ele se preparava para lhe responder.
Angelina tinha alguma razão no que dizia, havia explicado a "setora", porque os ninhos de poupa são extremamente malcheirosos. As pessoas da aldeia atribuíam esse mau cheiro ao material com que a poupa faria o ninho, imaginando tratar-se de excrementos de animais. Mas na verdade não era bem assim. Tratava-se de um truque ou de uma arma de defesa, que a poupa utilizava para que ninguém se aproximasse do seu ninho.


A bebida dos atores:

-   Aquilo queimava um bocadinho na garganta e no peito, mas era doce. - disse Angelina, primeiro furando com o dedo e depois arrancando um pedaço de uma folha de couve, sem prestar qualquer atenção às nervuras que ficaram a descoberto.
-   Esta é a bebida dos que querem ser atores! - dissera o Rogério, pondo-lhe num cálice - Isto solta os talentos das pessoas.
-    Oh, acho que quero outro! - dissera Angelina entusiasmada.


A vitamina dos deuses:

Depois o Rogério voltara com outra garrafa, agora já sem ser de coca-cola e já mais parecida com um frasco de xarope e com um largo sorriso, pusera apenas no cálice de Angelina.
-  A outra era a bebida dos atores, esta é a vitamina dos deuses... Bebe! - dissera ele estendendo-lhe o cálice.
Sem questionar, Angelina tinha levado o cálice à boca e só parara porque aquela bebida já não era doce e sabia a remédio.
-  Ó minha filha, a vida é assim mesmo!... - dissera ele, vendo-lhe a cara de espanto - Nem tudo pode ser doce. A vida de atriz também tem dias amargos!


No início

-  No início, estava sempre a ser apanhada porque eu tinha a mania de me pôr a riscar no caderno! - disse Angelina procurando puxar à mente algumas imagens das aulas.
-   A tua mãe não tem mais nada que fazer ao dinheiro do que comprar-te cadernos? - berrara-lhe uma vez a professora de Português - Ao menos tem dó das pobres árvores que têm que ser destruídas para que andes para aí a estragar folhas!
-   Só escreves no caderno o que eu puser no quadro. -avisara outra altura a professora de História.


Aos olhos de Angelina:

Aos olhos de Angelina aquilo tinha sido um sinal de clarificação. Não lhe podia ficar qualquer sombra de dúvida: nem o diretor da escola nem o diretor da sua turma tinha acreditado no que ela havia dito. Mas aos olhos de Angelina estava ali um verdadeiro "bico de obra". Se realmente eles, com o maior das à-vontades, repetiam as perguntas... a ela já não parecia possível repetir a mesma resposta. Com que "cara de pau" se ia pôr a dizer que, como já tinha referido, não tinha nada a ver com aquilo? Mas se não era fácil dizer outra vez o que já tinha dito e que eles não tinham acreditado, não parecia menos fácil dizer que ela não tinha ido buscar aquilo a lado nenhum! E que também não sabia quem é que lhe tinha metido na mochila tais objetos!... Não parecia nada fácil de dizer, mas era a maior e a mais pura das verdades.

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